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ONDE O GLOBAL E O LOCAL SE ENCONTRAM

25/03/2020 Eveline de Abreu Arte e Música

Artista plástica e também professora de português na Universidade Friedrich-Alexander (Alemanha), Jamile do Carmo,  além de diversos artigos, escreve contos para jornais e revistas, tanto em português como em alemão. Por sua vez, o mestre em física João Araújo é, ao mesmo tempo, poeta, compositor e escritor com livros já publicados. Estes dois brasileiros – ambos vivendo na Alemanha, ela, em Nürnberg, ele, em München – juntaram seus poemas-canções em um criativo experimento contendo ideias sobre memória, tempo e espaço, descortinando outro Brasil, esse que vai aos poucos se formando em outros lugares, graças aos movimentos de migração para outras terras fora da América portuguesa.  

O que até agora foi experimento conquistou o estatuto de projeto com lançamento previsto para setembro deste ano, sob o nome de Cancioneiro Glocal, para se referir à mistura de culturas locais tradicionais com as culturas globais modernas. Só para situar, o termo glocal nada mais é do que a fusão das palavras global e local para significar a emergência de traços característicos de uma cultura local na produção de uma cultura global. E o tom não poderia ser outro que não o de trova contemporânea, numa alusão aos tempos do Cancioneiro Geral

  

UMA PARÓDIA PARA COMEÇAR 

O Cancioneiro Glocal começou como paródia do Cancioneiro Geral.  No século XVI, o Cancioneiro, coletânea de poemas de poesia palaciana de Garcia de Resende (1470-1536), assinala um importante  período na língua portuguesa como primeira obra impressa em Portugal. Essa compilação, reunindo inúmeros poemas de diversos autores, é considerada marco literário coincidindo com a época das grandes navegações e, assim, com a difusão do português mundo afora. 

Baseado nesta ideia de deslocamento, espalhamento e disseminação, tanto em seus aspectos positivos como negativos, o Cancioneiro Glocal cria satiricamente uma representação paralela, a partir do fenômeno da mobilidade no mundo atual e globalizado. 

 

Das caravelas que foram, agora são os aviões que vêm, por Jamile do Carmo. Técnica bico de pena. (Imagem: acervo particular JdC). 

 

De acordo com o slogan adotado – Das caravelas que foram, agora são os aviões que vêm – passado e presente se intercruzam propondo outras e novas interpretações. Afinal, que Brasil se forma lá fora? Tem lá suas raízes? Como é mesmo representado? Pelas letras e sonoridade, o projeto Cancioneiro Glocal é um convite a uma aventura além-fronteiras, recheada de novas concepções e outros entendimentos quanto às  "territorialidades"  brasileiras em "geografias" não brasileiras.

 

CARTOGRAFIA POÉTICA 

O Cancioneiro Glocal inaugura uma nova cartografia poéticaa partir das produções de Jamile e João, animando e incentivando um programa não apenas músico-literário,  mas, também, criando maneiras diferentes para representar e reapresentar a heterogeneidade do Brasil e da língua portuguesa. "É o fazer valer das vozes nos novos contextos móveis, pois todas elas contam e cantam (e também recontando vai-se encantando)dando contornos, bem como reforço a uma nova realidade transnacional", diz com entusiasmo a professora Jamile do Carmo.           

 

Pedro, Pero e nós 

(Jamile do Carmo / letra e música) 

 

Pedro, Pero, aqui estamos nós!

Uma terra era à vista

O outro mar para atravessar

Pegue-não-pague de conquista

Terra Brasilis vai começar

E foi neste mar da história

Que eu não pude navegar.

Pois da voz que se calou   (refrão)

Dela ninguém mais lembrou

Tanta gente se esqueceu

Que de mim nem sei mais eu

Tô na rua, taba e favela

Em caravana, em caravela

Porto de Santos e de Benguela

Pero não pode negar

Que a pena que me escreve

É aquela do penar!

Pedro, Pero, que mar tão atroz!

Essa luz lusa que me "alumia"

Também é nagô e é tupinambá

Prisma de cores e alegorias

Olha, olha, pra não se apagar

Mantendo belo um horizonte

Dum novo cais para se embarcar.

Pois da voz que se calou… (refrão)

Pedro, Pero, não estamos mais sós!

Entre quilombo e quilombola

                                            

Uma longa história para contar

Mas varreram da memória

Nem quiseram nos perguntar

Pois foi só uma trajetória

Que aprendemos a trilhar

Pois da voz que se calou... (refrão)

 Pedro, Pero, aqui NOSSA VOZ!   

                                                

 

Já para João Araújo, temas e motes do Cancioneiro Glocal mesclam o vir a ser. "Ou seja, uma realidade de metafronteiras confere outras características tanto à cultura transportada (a do Brasil, por exemplo), como à cultura de acolhimento (a da Alemanha, por exemplo), dando, em razão dos deslocamentos, existência a uma nova história", conclui o escritor.

Importante esclarecer que, na ótica geopoética, o deslocamento não é apenas físico. Ele pode, sim, se dar pelas viagens, pelos contatos locais, mas também por expressões artísticas, tal como a literatura, o teatro, a música e as artes visuais, quer praticando-as ou simplesmente pelo  contato com elas.          

Com o propósito de estimular a percepção destas situações – em que, inevitavelmente, a ética não pode se dissociar das conexões entre o eu (brasileiro emigrante) e o outro (o estrangeiro que acolhe)entre o lá (o Brasil distante) e o cá (o país de acolhimento) – os jogos de sentido encontrados no Cancioneiro Glocal são um estímulo à decifração e, portanto, à compreensão do fenômeno das culturas entrecruzadas.  Tudo isso ao largo de projeções padronizadas, a exemplo dos estereótipos e folclorizações sobre a cultura brasileira.

 

A janela do tempo

(João Araújo/ letra e música) 

Ter caído aqui de pára-quedas dentro da janela do tempo

e supor-se parte da construção da casa

das sementes do seu jardim

é de chocar qualquer absurdo.

No rebuliço dessa areia movediça

de ondas altas e correntezas bravas

enxergar a diminuta folha que bóia temporal afora

levando o delgado inseto

é de pasmar o espanto.

A vida é um milagre escancarado

diluído pela nossa cegueira

: o nome disso é pavor.

As condições de temperatura

que possibilitaram transcrever o verbo semear

no delgado arame farpado

por onde atravessamos o vão da cordilheira

coloca todas as loterias no bolso...

E pelos dias (do alto) assistimos quase indiferentes

            :grãos na engorda de barro e sol

          filhotes que se calcificam

            gente que recebe bastão pela janela

            poema que prende suspiro em grafite.

 

Deste modo e não de outro, o projeto Cancioneiro Glocal revela em ritmos e palavras a cultura de berço trazida na bagagem afetivo-sentimental do migrante aportado em terras estrangeiras. Assentado na trindade sujeito-espaço-linguagem (pessoas-lugar-expressão), chamemos  este projeto de experiência geopoética – e eis aqui mais uma feliz fusão, geo (terra) e poética (dinâmica do pensamento).

Quando setembro vier, quem viver e vier verá. E aplaudirá.

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Eveline de Abreu

Publicitária e redatora. Descobriu a vocação para ensinar quando dirigia a assessoria de comunicação de um órgão público e precisou treinar e capacitar estudantes de jornalismo. Desde 2007 na Europa, adaptou esta experiência exitosa à versão digital e fundou a Incubadora de Escritores – serviço on-line de análise e parecer, apoio no desenvolvimento de textos, capacitação e revisão de conteúdo. A nostalgia do Brasil a levou a cozinhar e anotar receitas, na tentativa de compensar pela boca a saudade que lhe invadia o coração. O resultado tem sido a culinária natal, reinventada com produtos locais, e textos de dar água na boca.