07/03/2019 Cristian Góes Raízes Culturais
Foto: Cristian Góes
No último texto, apresentei uma rápida introdução sobre as identidades e suas relações com o Outro. Concluí afirmando que elas surgem apenas com a Modernidade, porém a percepção e a discussão de que não são naturais nem fixas somente são datadas do século XX. Antes das identidades, o Outro, essa diferença do Eu já existia em razão dos mapas culturais das nossas experiências, mas, com o Iluminismo, o Outro ganhou visibilidade para ser configurado como o rival incontestável, a ameaça constante, o eterno inimigo a ser subjugado e eliminado. Assim, as identidades se tornaram ações políticas de exclusão, muros erguidos entre Nós mesmos.
E de onde emergem as identidades? Até o século XV, a vida, de uma forma mais geral, apoiava-se nos desígnios divinos, com forte controle teocrático sobre as pessoas. O ser existia, mas não era sujeito de sua história. O mundo se resumia às estruturas e territórios medievais conhecidos. Fora disso, imaginava-se um lugar pavoroso, infernal, um buraco infinito onde habitava o Outro, afinal, a Terra era plana. A vida terrena visível era determinada pelas forças celestiais invisíveis. O divino era o centro e o homem um objeto dos desejos de Deus. Na Terra, nobreza e clero eram as vozes e representantes do céu e de suas vontades.
Ocorre que, no final do século XV, uma série de eventos marcantes empurraram aquelas sociedades para uma ruptura medieval. Cito as anotações dessa transição feitas por Stuart Hall (2006): “a reforma protestante, que faz surgir uma espécie de consciência do homem e que o libertou do controle da igreja Católica, sem ser fulminado por Deus; o Humanismo renascentista, onde o homem passa a ser o centro da vida; a revolução da Ciência, que fez o indivíduo se perguntar, investigar e descobrir os mistérios da natureza; e o Iluminismo, que faz surgir o sujeito racional, livre de dogmas e responsável por seu destino”.
Com essas “revoluções”, embarcamos na Modernidade, período que Anthony Giddens (2002, p. 21) conceitua como “um conjunto de instituições e modos de comportamento estabelecidos pela primeira vez na Europa depois do feudalismo”. Assim, a Idade das Luzes eleva o homem a uma condição visível em oposição às trevas. Aqui, permita-me um parêntese: não compartilho de análises segundo as quais a Modernidade implicou na ruptura radical, no alvorecer de uma verdadeira cultura, no fim das trevas da Idade Média. Há uma intensa propaganda renascentista contra o período anterior que objetiva apagar um tempo fecundo e criativo na história humana que desaguou exatamente nas transformações vistas na Modernidade.
Para além das identidades
Da Idade das Luzes emergiu a ideia de razão, de ciência, de homem e da sua subjetividade. O indivíduo que se reconhecia como indivíduo era uma resposta às ruínas do sistema feudal. Todavia, esse homem Moderno que faz conexões entre passado, presente e futuro, sem necessariamente depender dos desígnios divinos, não ficará desgarrado do mundo, solto, perdido, sem rumo. Parte dos sentidos dos vínculos espaço-temporais virá com as identidades. Boaventura de Sousa Santos (1994) diz que a Modernidade nasceu com e das identidades, com o aparecimento do Eu a confirmar o “colapso da cosmovisão teocrática medieval”.
Ocorre que aquela tutela vigilante emprestada pela fé em Deus, com o Renascimento, passou de mãos. Agora é a Nação, o Estado-Nação que promete abrigar o indivíduo, protegê-lo, estabelecer com ele laços profundos de vida e morte. É nesse momento que emerge a identidade, que mais tarde será floreada pelo espírito doentio do patriotismo.
O indivíduo nascido sob as asas da Nação será portador da identidade nacional. Esse sujeito será convencido de que carrega dos seus antepassados elementos de filiação que lhe garantem uma marca eterna, ultrapassando as gerações. Os vínculos não serão mais completamente divinos, mas vão girar em torno do seu círculo familiar, das tradições da Nação, da terra onde nasceu. Ele não pertencerá mais, por exemplo, à dinastia carolíngia ou merovíngia.
A consolidação da ideia de que o homem tem uma identidade, formulada a partir da Era Moderna, foi a chave política central para se produzirem e configurarem as ideias de nacionalidade e de Nação. Isso é tão significativo que essa fabulação se constituiu, segundo Edward Said (2011, p. 28), no próprio “núcleo do pensamento cultural na era do imperialismo”. Politicamente, um dos mais importantes frutos de toda produção da Modernidade foi o desenvolvimento da ideia de Nação, de Estado Moderno. Ele abrigará a identidade como uma necessidade de retroalimentação vital, uma marca a ser naturalizada e perpetuada no sujeito nacional.
Alguém pode imaginar que esse homem moderno, livre das arramas divinas e das obrigações teocráticas, inicia uma trajetória de liberdade, será dono do seu destino. Nada disso. A crise feudal, a razão, a ciência, o Iluminismo, a crítica ao clero, nada disso libertou o sujeito das estruturas de controle, pelo contrário. O indivíduo nascido com o Renascimento continuou sob intensa vigilância. Na Idade Média, estavam os olhos de Deus sobre ele. Na Modernidade, esse controle terá olhos e tentáculos do Estado-Nação. Como bem disse Benedict Anderson (1993, p. 29), a Idade das Luzes trouxe “a sua própria obscuridade moderna”.
O fato é que o sujeito moderno passou a ser enquadrado pelos poderes da Nação que lhe dará sentido, direção e vai organizar sua vida em meio à complexidade das relações sociais, cada vez mais urbanas e inseguras. A Nação, com o desenvolvimento do espírito do patriotismo, passa a ser o lugar da sensação de segurança do indivíduo. Agora, na Terra, o caminho do homem moderno será construir, aqui mesmo, o paraíso imaginário em honra ao passado glorioso e garantia de futuro. Isso, porém, implicará sua fidelidade aos projetos da Nação, entregar-se - inclusive com sua vida - para construir uma história não menos gloriosa.
Fidelidade e combate ao Outro
O Estado-Nação é a grande mãe que abriga seus filhos, reunindo-os em seus domínios institucionais e territoriais, emprestando-lhes proteção para os mesmos que Eu, os nacionais. Em contrapartida, exigirá deles, de Nós, uma absoluta fidelidade ao projeto de Nação. Essa jura não se resume apenas a reconhecer e ser agradecido, mas lutar contra os inimigos, imaginários ou não. A não luta é sinal de traição à Nação. A ideia da troca de segurança por fidelidade apenas se completa no combate aos Outros, aos de fora, aos que habitam além das fronteiras, aos que não são da Nação. Esses lugares e suas criaturas fabricadas como ameaçadoras vêm da Idade Média, mas, com o Estado-Nação, ganham intensas narrativas, tornando-se mais visíveis para que possam ser combatidas e eliminadas.
A ilusão em torno das Nações e das identidades tem, na visão de Etienne Balibar (1991), uma dupla dimensão: a de que territórios são estáveis e têm uma dominação unívoca e a de que temos um glorioso passado que nos impulsiona ao inevitável futuro, também glorioso. Em suas palavras: “projeto e destino são duas figuras simétricas da ilusão da identidade nacional” (p. 136). Projeto e destino serão utilizados na lógica de controle, pois não há projeto nem destino sem a fabricação do Outro como o mais estranho, ameaçador e o perigoso estrangeiro. Ele será a figura a ser exterminada para que se cumpram o projeto e o destino de glória da Nação.
Na Modernidade, com a identidade e o Outro definidos, despontará um novo indivíduo que Hall (2006) chamou de “sujeito sociológico”. Ele aprende a ter uma identidade reconhecida pelos mesmos do seu grupo. Para ele, o Eu e o Nós formam os elementos internos, e Os Outros, que podem ser um indivíduo ou uma sociedade inteira, com todas as suas imagens e estruturas inimigas, serão os elementos externos. Essa reacionária dicotomia radicalizada entre Nós, mesmo sendo uma fabulação do final do século XIX, ainda tem amplo apelo na contemporaneidade. Pior, tem ganhado espaço como objeto de manipulação política.
Aqui entram os Estudos Culturais com críticas à Modernidade por produzir esse sujeito limitado e que engole a fabulação de um Outro diferente dele. O fato é que o próprio tempo confirmou que as identidades não são naturais, únicas e estáveis. Sousa Santos (1994, p. 31) diz que até mesmo identidades imaginadas fixas, “como a de mulher, homem, país africano […] escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformações”. É o que também afirma Said (2011, p. 480): “a identidade não implica estabilidade dada e eternamente determinada, nem uma exclusividade, um caráter irredutível ou um estatuto privilegiado como algo total e completo em si e sobre si mesmo”. Zygmunt Bauman (2005, p. 17) segue o caminho: “o ‘pertencimento’ e a ‘identidade‘ não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e renegociáveis”.
Esse é um campo de disputa, mas essas várias identidades em permanente transformação ficarão mais claras com o advento da ideia de globalização. O “sujeito sociológico”, centrado na figura estabilizada do Eu e do Outro, das tradições, do amor pela terra onde se nasce, estará cada vez mais descentrado, fluído, envolvido com vários arranjos familiares e múltiplas nacionalidades. Na prática, há um frenético jogo político-narrativo entre a ideia das velhas tradições que alimentam uma identidade pura e natural e, por outro lado, a formulação das várias e instáveis identidades.
Antes de avançar nas críticas ao homem moderno e apontar o seu fim, com o surgimento da chamada “Pós-Modernidade”, vale a pena aprofundarmos a ideia de Nação e todo o conjunto político imaginário que ela atrai. Discutir a Nação, o nacionalismo, a ideia de Pátria é fundamental para chegarmos à Nação brasileira e às identidades no Brasil. Até lá!
REFERÊNCIAS
Anderson, B. (1993). Comunidades imaginadas: reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo. México: FCE.
Balibar, E. (1991). La forma nación: historia e ideología. In: Balibar, E. & Wallerstein, I. Raza, Nación y Clase. Madri: IEPALA, pp. 135-167.
Bauman, Z. (2005). Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Giddens, A. (2002). Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Hall, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A.
Said, E. W. (2011). Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras.
Sousa Santos, B. de. (1994). Modernidade, identidade e a cultura de fronteira. Tempo Social/USP, S. Paulo, 5 (1-2): 31-52. Em: https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/11597
Jornalista. Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com doutorado sanduíche na Universidade do Minho, em Portugal. É mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Especialista em Gestão Pública (FGV) e em Comunicação da Gestão de Crise (Gama Filho). cristiangoesdf@gmail.com