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AÇAÍ, GUARDIÃ

16/01/2021 Paula Botelho Turismo e Culinária

 

Palmeira de açaí em Belém,  no norte do Brasil. Foto: acervo pessoal Ana Moreno.

 

 

Frutos da palmeira de açaí.  Foto: O. Brazhnyk. Fonte: Banco de Imagens.

 

Em visita ao sul da Califórnia, anos atrás, meu marido esteve explorando bairros na região para a qual em breve a nossa família se mudaria. No percurso, encontrou açaí à venda em muitos quiosques e cafés, e aquela era uma ótima notícia. Nem todo gringo gosta, e nem todo brasileiro, também, mas ele, gringo e louco por açaí, correu para pedir um. 

Aká-i é como se pronuncia corretamente – disse a moça nas vendas do quiosque de açaí. A história daria outro texto, mas fica para outra vez.  

A denominação, em português, vem de ïwaca'i, adaptação do tupi-guarani, língua de alguns povos indígenas do Brasil, onde o maior produtor é o estado do Pará, seguido do Amazonas. O açaí é uma fruta nativa, mas encontraram formas de cultivá-lo. Segundo dados do IBGE-Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o Brasil, em 2019, produziu 1,4 mil toneladas de açaí, sendo a maior parte para consumo interno. “Açaí, guardiã”, canta Djavan, pela importância que tem a fruta para a subsistência das pessoas no norte do país. Como o arroz com feijão, em grande parte do país, ela é parte indispensável das refeições. 

Comum no sudeste do Brasil e no modo como se popularizou em países estrangeiros é comer o açaí com banana e outras frutas e adicionar granola. Muitos brasileiros adoçam com leite condensado; na Califórnia, há os que adoçam com coco ralado e creme de amendoim, um sacrilégio para muitos brasileiros. Mas muitos americanos talvez considerem detestável tomar açaí enquanto se come peixe frito, como em Belém do Pará. Eu mal vejo a hora de conhecer Belém e comer igualzinho ao povo, no mercado de lá: açaí com peixe frito, camarão ou charque.

 

VIRTUDES NUTRICIONAIS PARA DAR E VENDER

Na categoria dos alimentos saudáveis, o açaí contém muitos antioxidantes e interfere positivamente na degeneração celular causada pelo envelhecimento. Estes fatores, além do sabor, explicam a popularidade desta frutinha pequena, redonda e de coloração roxo-escura, nativa dos milhares de acres ao longo do delta do Rio Amazonas, em particular no Pará. Possui um custo acessível na Região Norte no Brasil, mas ainda não é um produto muito barato para a exportação e consumo fora da região de origem, considerando tudo o que está envolvido no acesso à fruta: plantio, quando cultivado, colheita, processamento e exportação. O açaí é vendido como polpa congelada fora do Brasil e para as regiões brasileiras onde não é nativo.

Na história de seu percurso fora do Brasil, os Estados Unidos lideram o consumo, seguidos do Japão e da Austrália. A família Gracie, de lutadores de jiu-jitsu, popularizou o açaí como ingrediente básico em uma dieta saudável, apresentando-o como um energético de baixo teor de açúcar e um alimento que não pesa o estômago, algo importante na prática de exercícios físicos. O jiu-jitsu brasileiro tem boa reputação nos Estados Unidos e parece ter contribuído para a disseminação do açaí no país. Na Europa, a exportação para a Alemanha e a Bélgica tem destaque, porém com números não tão impactantes quanto os da exportação para os EUA. A Oakberry, empresa brasileira de franquia, exporta para os EUA, Dubai, Austrália, Espanha e Portugal . Na China, inaugurou em 2020 uma loja em Shanghai, com planos de expansão para outras cidades . Na França, a startup Nossa! popularizou o açaí em lojas de produtos orgânicos e pela rede Carrefour, já tendo enviado também para a Bélgica

Parece haver maior timidez nos mercados europeus, talvez pelos temores em relação aos requisitos sanitários, mas a exportação brasileira cuida com rigor da pasteurização do produto, a fim de combater doenças como a de Chagas. Um desafio para a conquista de novos mercados é a logística, como indica Damien Binois, proprietário da Nossa!, na mesma matéria: “há poucas estradas. O transporte é feito por rios, igarapés. O açaí é um fruto muito frágil. É preciso tirar a polpa e congelá-la dentro de no máximo dois ou três dias. É um desafio manter a qualidade do produto”.

 

SAMBA, CARNAVAL E LOUCURA POR FESTA: O IMAGINÁRIO SOBRE O BRASIL E OS BRASILEIROS  

Estar às voltas com as narrativas exóticas sobre o Brasil e os brasileiros (também) no contexto do consumo do açaí dá um trabalhão daqueles e, também, o que pensar. Tempos atrás, comprei um suco de açaí da marca Zola. A propaganda associava praia, samba, carnaval, Ipanema, loucura por festas e o Brasil. Samba at 3 a.m? Yes you can (Sambar até as 3 da manhã? Claro, você consegue), anunciava a empresa, sem especificar que a quantidade de cafeína em um suco de açaí deixa muita gente acordada por horas. Isto porque o açaí é adicionado ao guaraná, para conservar a polpa, e o guaraná, fruta também amazônica, possui muita cafeína, em quantidade superior ao café. A propaganda utiliza este recurso para afirmar a inesgotável energia brasileira, como se fôssemos intrinsecamente assim e, também, a de quem consumir o produto. 

As narrativas da estereotipia associam os mesmos elementos, e os repetem, para os fixar, de modo a colar o significado ao objeto ou pessoa de forma tão grudada e rígida que o torna estável, e único, como se fosse particular, exclusivo. No caso do açaí da garrafinha, estabelece que o país é a mistura de praia, samba, carnaval e loucura por festa. 

Por tamanha perplexidade com o fenômeno, decidi um dia pesquisar estas representações. O eixo eram as narrativas sobre a cultura popular brasileira pela imprensa americana, em particular pelo jornal The New York Times. A música, as artes plásticas e o cinema brasileiro apareciam, nas críticas deste e de outros jornais formadores de um imaginário sobre o Brasil e os brasileiros, permeadas por exotismo e determinações sobre raça que afirmavam o que consideravam ser a nossa brasilidade*. Com tristeza, este e outros trabalhos constatam que as representações não são ingênuas e afetam as relações entre brasileiros e estrangeiros e as relações entre países. Indicar uma alegria contagiante pode sugerir um país não tão digno de ser levado a sério, já que os brasileiros “vivem na farra”. O marketing de Carmen Miranda na época da política de boa vizinhança entre os Estados Unidos e o Brasil contribuiu para vender bananas e outros produtos, mas às custas da fabricação de narrativas sobre o que constituía o povo e a nação brasileira. 

A mídia possui um papel de formação de opinião nem sempre óbvio. Em reportagem sobre o açaí da revista norte-americana The New Yorker, a fruta aparece definida, no título, como estranha, esquisita**  e anuncia a ascensão e o declínio do açaí. A matéria, que recupera a história da chegada do açaí nos Estados Unidos e a sua popularização no país, sugere que o declínio de sua apreciação está longe de acontecer, ao mesmo tempo em que afirma o contrário no título e em outras partes. As narrativas alternam a valorização e a desvalorização, em estratégia que pode confundir o leitor.

 

O AÇAÍ COM O PÉ NO MUNDO

Na mesma matéria da revista, figura o caso da Sambazon – empresa nascida como uma oportunidade comercial vislumbrada por dois americanos do sul da Califórnia –, que serve de ilustração para se pensar sobre a internacionalização de um produto brasileiro. Em viagem ao Brasil para a comemoração da passagem do milênio, Ryan Black, seu irmão Jeremy e o amigo Nichols experimentaram o açaí e montaram um plano de comercialização em seu país. Tentaram convencer as redes de mercados americanos a venderem tigelas no estilo comum no Rio de Janeiro (açaí como um purê congelado). Não tiveram uma boa aceitação e mudaram de estratégia, passando a vender o açaí para casas de suco, ressaltando a alta concentração de fibra e o poder antioxidante da fruta. 

Funcionou, e no primeiro ano, as vendas somaram 130 mil dólares para, no segundo ano, triplicarem. A participação da empresa no Sundance Film Festival, de 2003, popularizou a bebida de açaí entre celebridades como Jodie Foster e Mel Gibson e incluíram-na nas vendas da conceituada Whole Foods, uma multinacional dos Estados Unidos que vende produtos orgânicos, sem ingredientes artificiais. Michael Besançon, então presidente dessa rede de supermercados na região do sul do Pacífico, considerou o açaí um conjunto bastante atraente – o sabor, os nutrientes e a mística da Amazônia, reforçando o exotismo que acompanha as narrativas sobre a floresta, a região e o Brasil.

Há empresas que compram açaí da população ribeirinha e lhe dão qualquer valor que aceitem receber; a Sambazon parece pagar um preço de mercado garantido e doa 1% do preço de compra à comunidade local.  Isto contribuiu – também segundo a revista The New Yorker  – para melhorar sua condição de vida e possibilitou renda para a aquisição de barcos a motor e garantir seu deslocamento até as grandes cidades. Porém estes mesmos barcos passaram a trazer para a selva amazônica refrigerantes e batata frita, produtos que a revista descreve como “itens de primeiro mundo”, e afetou, em parte, o valor do açaí. Que mundo... 

A Sambazon nasceu da combinação de duas palavras: samba e Amazon. A “sorte” da empresa é que a marca também funcionou como sigla para Saving and Managing the Brazilian Amazon (Salvando e Gerenciando a Amazônia Brasileira), slogan que a empresa procurou ajustar, pelo receio de parecer “gringos paternalistas”, tentando salvar os brasileiros e a Amazônia. Para suavizar outras discussões que afloraram, passou a utilizar o acrônimo para designar Sustainable Management of the Brazilian Amazon (Gestão Sustentável da Amazônia Brasileira) e foi  “salva pelo gongo” ao enfatizar o esforço de “gestão sustentável”. 

Não é um empreendimento de pequeno porte. Instalou a própria empresa de processamento de açaí no Amazonas, com o auxílio de um empréstimo de quase 4 milhões de dólares do Overseas Private Investment Corporation, instituição financeira de desenvolvimento do governo dos Estados Unidos que apoia empresas do país no investimento em países estrangeiros; e com empréstimos adicionais da Nature Conservancy, organização internacional, sem fins lucrativos, líder na conservação da biodiversidade e do meio ambiente construíram um local de quase 6 mil metros quadrados, em Santana, pequena cidade perto de Macapá, grande centro comercial no Amapá. 

Como se pode observar, há muito mais em uma tigela de açaí do que supõe a nossa vã filosofia. 

 

Frutos da palmeira do açaí após colheita. Foto: R. Teodoro.

 

AS GENTES DO AÇAÍ

Eduardo Brondízio, antropólogo brasileiro e professor na Indiana University Bloomington, defende a necessidade de um reconhecimento mais amplo da contribuição dos pequenos produtores e da existência de programas que apoiem a sua participação na economia. Reforça a ideia de que o valor agregado*** ao açaí deve acontecer na região – e que seja pelas mãos da população do Amazonas. 

Além de mais investimentos em oportunidades para o processamento, armazenamento e industrialização do açaí em municípios do Amazonas de modo a agregar valor, criar mais oportunidades de trabalho e alocar mais recursos que possam ser investidos no desenvolvimento local e em programas sociais para a população da região, uma vez que os municípios da Amazônia lutam com a crescente demanda por serviços, infraestrutura urbana e melhor apoio para as populações rurais – com a palavra, Eduardo Brondízio

Possa assim o olhar estrangeiro ver o Brasil e a sua riqueza sob uma ótica que considere o seu povo e os recursos naturais, sem o exotismo e a desvinculação da situação humana que ali existe. Possamos todos dispor de outros olhares para os ribeirinhos subindo nas palmeiras de mais de 12 metros de altura para recolher o açaí, sem equipamento de proteção. Pessoas colhendo para comer, trabalhar, viver. Gente. 

E gente vale mais do que qualquer coisa. Tomar açaí e entender isto muda tudo. 

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* Brazilian music in The New York Times: Sites for the production of representations of U.S. dominance and the consumption of Brazilian popular culture. Germany: Lambert Academic Publishing. Paula Botelho, 2014.  

** Strange Fruit. The rise and fall of açaí. (Fruta estranha. A ascensão e queda do açaí), 23 de maio de 2011.

***  O valor agregado nada mais é do que uma análise avançada de seu projeto quando ele ainda está em desenvolvimento. Segundo o Project Management Body of Knowledge (PMBOK) – guia de práticas na gestão de projetos elaborado pelo Project Management Institute (PMI), instituição internacional sem fins lucrativos que associa profissionais de gestão de projetos – valor agregado é a quantidade de trabalho desempenhado expressa em termos do orçamento definido para tal. Portanto, valor agregado é o valor orçado do trabalho realizado. 

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Paula Botelho

Doutora em Language, Literacy and Culture (Universidade de Maryland), mestre em Educação (Universidade Federal de Minas Gerais), tradutora certificada (Centro de Ensino Brasillis), reside nos Estados Unidos há quase 15 anos. Seus livros e textos discutem o bilinguismo, migração, português como língua de herança e a visão da imprensa americana sobre a cultura brasileira. Atualmente, trabalha com escrita e tradução, ensino de português para estrangeiros, como em oficinas de cultura brasileira e literatura para crianças brasileiro-americanas.