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CARNAVAL DE SALVADOR, UMA HISTÓRIA FEITA DE MUITAS HISTÓRIAS

11/02/2021 Manuela Tchoe Tradições populares

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Carnaval de Salvador. Foto: Fabio Marconi.

Como baiana, acredito piamente que o Carnaval de Salvador é o melhor do mundo. Apesar de minha família não ser lá muito carnavalesca, desde criança eu me fantasiava com gosto e dançava ao som de marchinhas. Adolescente, pulávamos Carnaval na pipoca, ou seja, na carona da música de um bloco. Quando dava, pagávamos doze prestações por um abadá (short e camisa coloridos, normalmente estampados e com o logotipo do bloco carnavalesco) para fazer parte do bloco da moda. 

Ao som da Timbalada, antes do Carnaval, íamos nos familiarizando com os próximos hits da festa. Como meus pais moravam no Candeal, bairro onde Carlinhos Brown fundou o grupo, nós ouvíamos o batuque do 10º andar, para desespero de meu pai que desejava assistir ao que passava na TV. E, é claro, eu comparecia assiduamente aos shows do Olodum, no Clube Bahiano de Tênis, e aos ensaios do Ara Ketu, para deixar o corpo estremecer, as pernas desobedecerem, as mãos embalançarem – inconscientemente dançarem – porque Carnaval é bom demais. 

Bons tempos, aqueles! Nos anos 90, comecinho de 2000, quando ainda vivia em Salvador, eu não tinha noção de como essas histórias de Carnaval deram sentido e identidade a jovens baianos como eu, jovens que desejavam pertencer à “terra da felicidade” chamada Bahia, como exaltou Dorival Caymmi, na música Na Baixa do Sapateiro. Foram esses ritmos que ajudaram a moldar a cultura de um povo que tem, no Carnaval, o ponto máximo do ano. Aliás, não dizemos por aí que o ano só realmente começa depois da Quarta-Feira de Cinzas?

O Carnaval de Salvador, assim como seus equivalentes no Rio, São Paulo, Recife e Brasil afora, são manifestações populares que, de um lado, vieram da influência europeia das festas de elite à fantasia, e, por outro, o povo que tomava as ruas em festejos mais populares.  Ao longo do século XX, em cada canto do nosso país, vertentes diversas foram criadas. E, em Salvador, apesar de não ser o mais famoso mundialmente, o Carnaval toma proporções gigantescas. Em 2020, foi a maior festa carnavalesca do país, com 16,5 milhões de pessoas. 

Como a gente sabe, se tamanho não é documento, a história é. Portanto, nada melhor do que fazer uma breve retrospectiva do Carnaval de Salvador, a melhor festa popular do planeta. 

 

DA ELITE PARA O POVO: A CRIAÇÃO DOS AFOXÉS

Muitos dizem que o Carnaval de Salvador começou com os legendários Dodô e Osmar, os criadores do trio elétrico. Mas não é bem assim: a festa popular começou bem antes. O ano de 1884 é considerado marco oficial, quando a organização dos festejos e os desfiles de clubes com seus carros alegóricos se tornaram dignos de nota. Ainda assim, o Carnaval se mantinha como uma celebração de elite. 

Foi apenas em 1895, que a folia começou a se popularizar e a ser influenciada pela cultura negra, com o primeiro afoxé – cortejo de influência religiosa africana, cujo ritmo é o ijexá – organizado por negros nagôs, denominado Embaixada Africana. Na época, tais desfiles eram limitados, assim como as festividades, a bairros da periferia, enquanto a elite permanecia em áreas da cidade consideradas nobres. 

Em 1904, um grupo de afoxé quebrou essa segregação e gerou protestos acalorados, culminando na exigência de que clubes fossem previamente registrados para desfilar no Carnaval de Salvador, no ano seguinte. Muitas foram as tentativas para impedir o desfile de afoxés, o que levou tais grupos a lutar para conseguir o espaço para a manifestação da cultura negra.  

Desde então, diversos afoxés foram criados em Salvador. O famoso Filhos de Gandhy, fundado em 1949 por estivadores portuários, foi inspirado nos princípios de não violência do ativista indiano Mahatma Gandhi, assassinado no ano anterior. O bloco é formado exclusivamente por homens e traz a tradição da religião africana ritmada pelo agogô, cuja passagem feito um tapete branco pelas ruas da cidade se tornou uma das marcas registradas do Carnaval soteropolitano.  

 

CARNAVAL ELÉTRICO

Ao mesmo tempo que os afoxés ganhavam espaço, os músicos amadores Adolfo Nascimento (conhecido como Dodô) e Osmar Macedo conheceram-se num programa de rádio, em 1938. Quatro anos depois, a dupla inventou a guitarra baiana – nascida com o nome de Pau Elétrico – instrumento com qual misturavam choro, música erudita e frevo. Mais tarde, o instrumento ganhou forte influência do rock, graças a Armandinho Macedo, filho de Osmar. 

Mas foi em 1950 que a invenção revolucionou o Carnaval de rua. A autodenominada Dupla Elétrica formada por Dodô e Osmar saiu pela cidade em cima de um Ford 1929 – a “Fobica” –  tocando instrumentos fabricados por eles próprios, adaptados às músicas da Academia de Frevo do Recife. 

E de onde vem, então, “Trio Elétrico”?  Porque eram três pessoas que tocavam: a dupla e mais Temístocles Aragão, também músico. "Elétrico" porque, para amplificar o som, os instrumentos não podiam ser acústicos.

E foi assim que o conjunto passou a se chamar Trio Elétrico. A partir daí, fossem quatro, cinco ou mais, o nome continuaria para sempre Trio Elétrico.  

Seis anos mais tarde, surge o conjunto musical Tapajós que, montado numa caminhonete, se tornou o grande responsável pelo trio elétrico ter se disseminado como fenômeno carnavalesco. Desde os anos 50, os blocos de rua se expandiram e o Carnaval de Salvador começou a tomar a forma que conhecemos hoje. 

 

O REI MOMO

O chefe do Carnaval, o Rei Momo, começou o seu reinado em Salvador em 1959. Figura que remonta à mitologia grega, Mômos encarnava a ironia e o sarcasmo. No Brasil, este personagem mitológico foi adaptado para as festas carnavalescas, tornando-se um dos principais símbolos do carnaval, desde a década de 30. Em Salvador, quando o Rei Momo recebe a chave da cidade, ele abre a folia. De 1959 a 1988, apenas um Rei Momo governou o Carnaval, o Ferreirinha. No ano seguinte, a coroa foi passada para seu filho. Mas nos anos 90, a dinastia terminou com eleições anuais para Rei Momo. 

 

ESCOLAS DE SAMBA E BLOCOS DE ÍNDIO

Nos anos 60, juntamente com o Carnaval elétrico, escolas de samba dominaram o cosmos carnavalesco. Afinal, o samba nasceu e cresceu em território baiano! Filhos do Tororó e Juventude do Garcia foram exemplos de escolas nascidas de batucadas, charangas e fanfarras. Essas escolas se tornaram rivais e obedecendo a uma territorialidade. Em 1966, as escolas de samba se tornam a principal atração do Carnaval de Salvador, tendo desfile com enredo e alas entre o Campo Grande e a Praça Municipal. 

Além do samba, na década de paz e amor, nasceram os blocos de índio, influenciados pelos filmes de faroeste com representações de caubóis e grupos indígenas norte-americanos. Na verdade, muitos foliões desses blocos passaram anteriormente pelas escolas de samba, como no caso do Apaxes do Tororó, fundado em 1968 por ex-integrantes da escola Filhos do Tororó. 

Assim como as escolas de samba, os blocos de índio perderam força com a chegada de organizações carnavalescas e a força dos ritmos da cultura negra. Ainda assim, algumas agremiações, como o Apaxes, continuam agitando o Carnaval até hoje. 

 

BLOCOS AFRO VIERAM PARA FICAR

A partir dos anos 70, os blocos afro começaram a ganhar mais proeminência. 

No bairro do Curuzu e Liberdade, nasceu o bloco Ilê Aiyê, em 1974. Por aceitar somente integrantes negros e, em seu primeiro desfile, sair com cartazes em apoio à negritude, acabou por ser considerado racista pela mídia. Porém o bloco se tornaria símbolo da cultura africana com seus atabaques, tambores, coreografias, enredo e figurinos. Até hoje, é uma das maiores atrações da festa. Não só os ensaios como o notável trabalho social em sua sede chamaram a atenção da televisão francesa que o incluiu no programa chamado Brésil en Fête, na década de 1990. 

Já o Olodum popularizou o seu ritmo contagiante e as batucadas coreografadas, além de ter se estabelecido como escola de tambores afro-brasileiro e como uma organização não governamental do movimento negro. O Olodum se tornou famoso mundo afora, gravando músicas com Michael Jackson e a dupla Simon & Garfunkel.

 

A AXÉ MUSIC

Minha infância foi abençoada pela musicalidade e os clássicos do axé dos anos 80. Os grupos mais famosos nasceram nessa época – o Bloco Eva, Cheiro de Amor e Chiclete com Banana. Luiz Caldas foi o inventor do ritmo que misturava o pop com o reggae, toques caribenhos, ijexá, frevo e samba, apelidado de "deboche", mais tarde, denominada de axé music. A gente dançava com os dedinhos para cima com a famosa canção Fricote que repetíamos como um disco arranhado. 

Desde então, foram muitas as estrelas da axé music que despontaram para além das fronteiras baianas, como Daniela Mercury,  Ivete Sangalo, Margareth Menezes e Netinho.

 

MINHA VIZINHA, A TIMBALADA

No bairro do Candeal, em 1991, Carlinhos Brown lançou a Timbalada, uma banda de samba-reggae para deleite dos jovens e horror dos vizinhos de mais idade. Tendo o timbal – um tipo de tambor que dá nome ao grupo – como essência, a Timbalada criou uma estética inédita com pinturas tribais de cor branca pelo corpo dos timbaleiros, que usavam latas, baldes e tampas de panela como instrumentos musicais nada convencionais. 

Sucesso garantido e permanente desde a estreia no Carnaval, a partir de quando tem acumulado um prêmio atrás do outro. 

 

TODO MUNDO JUNTO E MISTURADO

Felizmente, o Carnaval se tornou mais democrático, se comparado ao seu começo elitista e segregacionista, com a popularização dos trios elétricos e a criação de megablocos. Ainda assim, entre 1980 e 2010, o Carnaval de rua terminou por criar espaços privados nos blocos, com a venda caríssima de abadás e as infames cordas que separavam os associados dos foliões da pipoca. Sem falar dos camarotes que aprofundaram esta divisão de classes no coração do espaço público, as ruas, que algumas décadas atrás, permitia que se curtisse a festa com cadeiras dispostas nas calçadas em frente de casa. 

Ao lado dos grandes circuitos, existe o Carnaval de bairro. A Mudança do Garcia é exemplo dos mais eloquentes, cujas origens datam de 1926, no bairro que lhe dá nome. O bloco é carregado de referências a antigas folias momescas, como os foliões mascarados e, sobretudo, com figuras que mostram personalidades políticas e cartazes de protesto esbanjando humor. 

Já no Pelourinho, o Carnaval traz sempre muitas atrações para a família. São estas manifestações que preservam a vasta história do Carnaval de Salvador. Resiste, portanto, um caráter de democracia do Carnaval, para unir gente de todo tipo, todo mundo junto, tudo misturado! 

 

MAIS QUE UMA FESTA

O ano 2000 trouxe o Carnaval do milênio que comemorou fatos importantes do mundo, do Brasil e da Bahia: 500 Anos do Descobrimento do Brasil, 50 anos do trio elétrico e 15 anos da axé music. Dez anos depois, o desfile de afoxés no Carnaval de Salvador se tornou patrimônio imaterial da Bahia. E, assim, o Carnaval de Salvador continua um dos pilares da música e da cultura baiana. 

Por isso, falar de Carnaval é muito mais que falar de uma festa. É a manifestação da raiz africana de nossa gente, da música que se tornou trilha sonora de nossas vidas, enfim falar de uma cultura de que tanto temos orgulho. 

Retomar a história do Carnaval é capturar a história de cada folião, de cada um de nós. Afinal, como canta Caetano, “atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”. E quem vivo está, certamente, tem muita história carnavalesca para contar! 

  

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Manuela Tchoe

Escritora baiana, vive desde 2005 na Alemanha, onde trabalha como executiva de marketing. É autora da coletânea de contos "Ventos Nômades" e do romance "Encontro de Marés". Também escreve sobre a vida de imigrante, viagens e literatura no seu blog pessoal "Baiana da Baviera".