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CLARICE LISPECTOR & MACHADO DE ASSIS: OLHARES SOBRE A DISSEMINAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA NO EXTERIOR

12/10/2020 Paula Botelho Literatura e Leitura

Conversar sobre a internacionalização da literatura brasileira é um convite para pensarmos a respeito do valor simbólico das diferentes línguas, das traduções das obras e da consagração dos autores. Porta aberta para avaliarmos o nosso patrimônio literário e as dimensões da difusão de tanta riqueza produzida, mas nem sempre mundialmente conhecida. E reconhecida. 

Os limites da internacionalização da literatura brasileira se relacionam, em certa medida, com a qualidade das traduções disponíveis. No ano passado, o jornal Los Angeles Times discutiu como certas traduções, consideradas de péssima qualidade, modificaram a instigadora prosa de Clarice Lispector, comparando-a, em densidade, a de James Joyce, escritor irlandês conhecido pela profundidade e complexidade de seus textos. A recepção do trabalho de Clarice parece ter se modificado a partir de 2012, quando a editora New Directions, com a ajuda de Benjamin Moser, deu início à publicação de traduções de trabalhos aclamados da escritora (LA Times,13/06/19).

A qualidade da tradução afeta a recepção da obra, mas não parece ser o único fator para sua difusão no exterior. Também no caso da literatura, as obras estão sujeitas a uma posição na hierarquia do capital cultural simbólico (Pierre Bourdieu, Outline of a Theory of Practice, 1997).  Dito de outro modo, críticos culturais estão investidos do poder de delegar poder ou destituir o valor cultural de um e de outro trabalho ou autor. É comum, no universo das artes, por exemplo, que os donos de galerias, críticos, editores e outras pessoas de prestígio trabalhem de modo a criar o reconhecimento de determinados artistas e influenciar as leis que governam a produção e a circulação de bens artísticos, para negociar o acesso dos autores no mundo da arte, permitindo a consagração de alguns, em apoio não meramente desinteressado ou somente estético, como também discute Bourdieu, em outro trabalho importante (The field of cultural production, 1993). A literatura parece não fugir às rédeas do mercado simbólico, e, apesar de sua mão tantas vezes perversa, o mercado também acerta em quem aposta. 

 

DOIS CASOS EXEMPLARES

Clarice Lispector e Machado de Assis: riquezas literárias brasileiras para aplaudirmos de pé e apresentarmos com reverência e orgulho ao mundo. Obras originais e traduzidas dignas de um espaço nas bibliotecas nacionais e estrangeiras. 

A escritora Clarice Lispector. (Foto: Reprodução / El País, 10/12/18).

 

CONHECER UMA CLARICE LISPECTOR que também escreveu obras infantojuvenis, como A Mulher que Matou os Peixes, em uma discussão importante sobre o perdão e a culpa, é imprescindível. Uma escritora que generosamente distribui percepção sensível sobre o cotidiano e as angústias existenciais com delicadeza. 

“Exorbito-me e só então é que existo e de um modo febril. Que febre: conseguirei um dia parar de viver? ai de mim que tanto morro. Sigo o tortuoso caminho das raízes rebentando a terra, tenho por dom a paixão, na queimada de tronco seco contorço-me às labaredas”. – trecho de Água Viva, de Clarice Lispector.

Que pensa no frango ao molho pardo e em coisas que a gente também pensa, mas nem sempre revela, por vezes nem para nós mesmos! 

“...é preciso não esquecer e respeitar a violência que temos. As pequenas violências nos salvam das grandes. Quem sabe, se não comêssemos os bichos, comeríamos gente com o seu sangue”. – trecho de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector.

 

Clarice Lispector tem recebido grande atenção de leitores, estudiosos e editores estrangeiros há décadas, desde a sua chegada à língua francesa, no início dos anos 50. Sua estreia em língua inglesa se deu nos anos 60, com a tradução de A Maçã no Escuro, por Gregory Rabassa, e as traduções por Elizabeth Bishop, poeta norte-americana e “espécie de arauto do talento de Clarice Lispector em língua inglesa”, em 1964, de três contos de Clarice – “Uma galinha”, “A menor mulher do mundo” e “Macacos” (A Internacionalização de Clarice Lispector: História Clariceana em Inglês. Freitas e Costa, 2007). 

Na década de 70, Clarice foi traduzida por Giovanni Pontiero, professor de literatura latino-americana na Universidade de Manchester (Inglaterra) e tradutor de José Saramago para a língua inglesa. Na tradução do conto “A imitação da rosa”, na coletânea Other Fires: Short Fiction by Latin-American Women (1985), Isabel Allende assinou o prefácio. Em 1986, Pontiero publicou a coletânea de contos Legião Estrangeira (1964) e A Hora da Estrela, romance que teve outras quatro reimpressões em anos seguintes.

Ainda em 1986, Richard Mazzara e Lorri Parris traduziram Uma Aprendizagem ou O livro dos Prazeres (1969). Em 1988, Ronald W. Sousa traduziu A Paixão segundo G.H., retraduzido por Idra Novey, em 2012, com introdução de Caetano Veloso, e reeditado em 2014. Em 1989, Elizabeth Lowe e Earl Fitz, estudiosos de literatura brasileira, traduzem Água Viva para a coleção Exxon Lecture Series, da mesma editora, retraduzido com o título em português por Stefan Tobler, em 2012 – vale ressaltar que Stefan também é tradutor de Raduan Nassar.

Hélène Cixous, crítica literária feminista francesa, responsável pelo prefácio de The Stream of Life (Água Viva), publicaria, ainda, pela editora University of Minnesota Press, o ensaio “Reading with Clarice Lispector”, em 1990, contribuindo para a consolidação do interesse por sua obra. O ensaio foi traduzido do francês para o inglês por Verena Andermatt Conley e caracterizou Clarice como “a principal prosadora latino-americana deste século”. 

Nos anos subsequentes, também recapitulando Freitas e Costa (ibid.), outras traduções inglesas de peso aparecem. Em 2009, é lançada, em português, a biografia da autora, assinada por Benjamin Moser, além de Clarice Lispector - Uma Vida, pela Editora Civilização, traduzida por José Geraldo Couto, e, em inglês, Why this World: a Biography of Clarice Lispector, pela Oxford University Press. Em 2015, foi lançado, nos Estados Unidos, The Complete Stories, que reúne os 85 contos de Clarice Lispector, organizado e prefaciado por Moser e traduzido por Katrina Dodson.

 

"Foto inédita de Machado de Assis reaquece polêmica sobre o embranquecimento do autor". (Foto: Reprodução / Portal Geledés, 08/07/18).

 

A HISTÓRIA DE MACHADO, de modo semelhante, traz outras surpresas. Em junho passado, foi lançada nos Estados Unidos uma nova tradução em inglês de Memórias Póstumas de Brás Cubas (selo Penguin Classics, tradução de Flora Thomson-DeVeaux), e o livro foi esgotado em um único dia. A tradução anterior, nos anos 50, teve prefácio de Susan Sontag, e o fã-clube de Machado, que, além dela, inclui Woody Allen, Allen Ginsberg e Salman Rushdie, contribui, sem dúvida, para a disseminação e recepção das narrativas maravilhosas do Bruxo do Cosme Velho. E se por um lado temos o reconhecimento notório, por outro, na lógica dura e triste do mercado simbólico e da internacionalização das obras, a literatura traduzida é considerada periférica, nas críticas de sistemas culturalmente centrais (A crítica na recepção da tradução de Machado de Assis na Itália. Palma e Guerini, 2009). Exceções parecem se relacionar com a valorização dos best-sellers, mesmo que sejam de culturas consideradas periféricas. Escritores como Jorge Amado e Paulo Coelho se tornaram fenômenos de venda também no exterior, e o apelo ao exotismo visto na mídia é um fator que afeta a recepção no estrangeiro. 

Há críticas, no entanto, que trazem outros pontos de vista. Tom Hennigan, correspondente da América do Sul para o jornal The Irish Times, manifestou seu parecer sobre a tradução de Memórias Póstumas de Brás Cubas (Issue 125, September 2020) para a revista Dublin Review of Books. Nele, o jornalista analisa a relativa imperceptibilidade de Machado, em parte devida à marginalização do Brasil em termos culturais e mundiais, e a língua portuguesa aparece como variável importante: apesar de ter mais falantes nativos do que o francês, o português tem peso menor, o que dificulta a saída da esfera lusófona e a internacionalização das traduções literárias brasileiras, comparativamente ao inglês, o espanhol e o francês. 

Por último, mas não menos triste, além de Machado de Assis ter escrito em português e ser brasileiro, o Brasil, na imaginação global, é percebido como culturalmente periférico. O Dublin traz também uma apreciação de Sontag, em que ela diz que Machado seria mais conhecido se não fosse brasileiro, se não tivesse passado sua vida inteira no Rio de Janeiro e se fosse, digamos, italiano, russo ou até mesmo português, expressando seu pasmo em ver que Machado de Assis ainda não ocupa o lugar de grandeza que merece. Ou seja, as representações sobre quem é o outro, de onde vem e que língua fala contam a tal ponto que chegam a afetar a recepção e disseminação das obras. 

Mas como ignorar o exame que a literatura de Machado faz do legado deixado pelo imperialismo, pela corrupção, pela opressão racial e econômica e a hipocrisia da elite, sugere o Dublin. Quincas Borba e Dom Casmurro – este último descrito pelo jornal como um devastador estudo psicológico do impacto nas vidas humanas das sociedades patriarcais misóginas – ao lado dos contos que Machado escreveu, deveriam ter colocado o escritor no lugar a que ele faz jus: o de legado para o mundo.

 

O LEGADO DOS ESCRITORES BRASILEIROS 

A literatura nos humaniza, nos revira de ponta-cabeça. Como não rever a nossa tradição escravocrata e o tratamento dispensado às empregadas domésticas e a outros assalariados quando lemos Machado de Assis numa conversa com o escravo Pancrácio, advogando as “vantagens” de ser escravizado? De que maneira não considerar como tentamos convencer o outro de que servir vale a pena, para garantir sermos servidos por ele?  – da série “Bons Dias!”, da Gazeta de Notícias, onde, com fina ironia, Machado discorre sobre a escravidão e o fim dela.

Por esta e outras, uma salva de palmas a Machado de Assis, Clarice Lispector e outros tantos escritores brasileiros. Que possamos apresentá-los com reverência e nobreza, abrindo as bibliotecas nacionais e estrangeiras às obras originais e traduzidas. 

Ainda que a recepção da literatura no exterior esteja sujeita a uma competição muitas vezes submetida a uma lógica baseada na avareza da valorização da riqueza do outro, cuja lógica não consagra aqueles que merecem a tempo e com todos os méritos.

Eterno agradecimento a Machado e à Clarice. Sempre. Pelo legado que deixaram para o Brasil e para o mundo. Enquanto isso, que nunca esqueçamos de dar vivas à nossa fecunda e monumental literatura.

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Paula Botelho

Doutora em Language, Literacy and Culture (Universidade de Maryland), mestre em Educação (Universidade Federal de Minas Gerais), tradutora certificada (Centro de Ensino Brasillis), reside nos Estados Unidos há quase 15 anos. Seus livros e textos discutem o bilinguismo, migração, português como língua de herança e a visão da imprensa americana sobre a cultura brasileira. Atualmente, trabalha com escrita e tradução, ensino de português para estrangeiros, como em oficinas de cultura brasileira e literatura para crianças brasileiro-americanas.