06/02/2021 Sonia Marinho Saúde
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou que uma nova pandemia, causada pelo altamente infeccioso coronavírus, se espalharia rapidamente pelo mundo e ceifaria muitas vidas, caso não fossem tomadas as precauções necessárias . A OMS alertou, igualmente, a todos os países membros, para que adotassem medidas de isolamento social, a fim de impedir que seus sistemas de saúde entrassem em colapso, com o afluxo simultâneo de muitos casos da covid-19, e que necessitariam de cuidados em saúde. Diante da recomendação, esses países começaram a se organizar, a fim de enfrentar a pandemia mais mortífera do último século, desde a gripe espanhola, de 1918, causada pelo vírus do tipo influenza.
No Brasil, o sistema de saúde público nacional, num primeiro momento, encarou o novo coronavírus com tranquilidade e, inclusive, já estava se preparando para isto, desde o primeiro caso surgido em Wuhan, na China, como já havia se preparado anteriormente, em 2009, para combater a pandemia de gripe suína, originada no México, causada pelo vírus influenza, subtipo H1N1. O Brasil superou a gripe suína com poucos casos e óbitos, em comparação a outros países, graças à boa organização de seu Sistema Único de Saúde (SUS).
Saúde como direito de todo cidadão brasileiro
Mas, afinal, o que é, como funciona, por que defender e o que tem o SUS, de tão especial, que coloca o país em vantagem para o combate de uma pandemia dessas proporções, mesmo em relação aos EUA, que gastam em saúde muito mais do que qualquer país da Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE)?
No país, a implantação de um sistema de saúde único somente foi possível graças ao movimento sanitário, que congrega médicos, enfermeiros, todos os profissionais de saúde e associações da sociedade civil que, juntos, lutaram incansavelmente pelo direito à saúde de todos os cidadãos brasileiros, desde os anos de 1960. O movimento sanitário brasileiro ganhou forças, sobretudo com a Declaração de Alma-Ata, emitida pela OMS ao final da Conferência sobre Atenção Primária à Saúde, realizada na cidade de mesmo nome (atualmente Almaty, Cazaquistão), em setembro de 1978.
8ª Conferência Nacional de Saúde. Fonte: acervo Fiocruz, 1986.
Assim, ao longo da década de 1980, foi se consolidando o movimento sanitário, que teve seu ápice com a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, cuja recomendação principal foi a luta pela Saúde como um direito de todos os cidadãos, coroada no Artigo 196 da nova Constituição Federal brasileira, promulgada em 1988: “A saúde é direito de todos e dever do Estado”.
O direito à saúde foi regulamentado com a promulgação da Lei 8080, de 19 de setembro de 1990, que criou o SUS, inspirado na organização do Sistema Nacional de Saúde Britânico (NHS), oferecido gratuitamente a 66 milhões de cidadãos britânicos. Entretanto, o SUS é maior, pois atende a cerca de 220 milhões de brasileiros, vivendo no 5º maior país em extensão territorial.
Interessante notar que o SUS, em setembro de 2020, no meio da pandemia, completou 30 anos de acesso ao cuidado integral em saúde, desde o nível primário, nos postos de saúde da família, ao terciário, na reabilitação de politraumatizados, nos hospitais especializados e nas UTIs.
Acesso universal à prevenção e à assistência médica no Brasil
O SUS proporciona o acesso ao sistema público de saúde, sem discriminação de renda, gênero e etnia. A atenção integral à saúde inclui programas de prevenção de doenças e cuidados assistenciais em hospitais. Muitos não se dão conta, mas a maioria dos serviços de saúde é oferecida, desde os mais simples aos mais complexos: da vacinação até o transplante de órgãos. O programa de distribuição gratuita de medicamentos contra a aids, iniciado em meados dos anos 90, revolucionou o tratamento da doença, ao controlar novas infecções e salvando muitas vidas.
Desde o início de 2000, foi implantado o resgate de acidentados pelo Serviço de Atendimentos a Urgências (SAMU), criado nos moldes do serviço de saúde francês. Se nenhum hemofílico é infectado pelo vírus da aids e se muitos recebem sangue de boa qualidade, caso tenham um acidente e sejam operados em hospitais públicos ou em hospitais privados cinco estrelas, quem garante a qualidade do sangue nestas transfusões são os hemocentros do SUS.
Zé Gotinha – uma campanha de imunização muito bem sucedida do SUS
Em plena pandemia, o SUS lançou o programa "Vacina Brasil", em 5 outubro de 2020, cujo objetivo foi imunizar crianças e adolescentes até 15 anos de idade contra diversas doenças infecciosas, como sarampo, febre amarela, rubéola, caxumba, hepatites A e B . Para tanto, foram mobilizadas equipes de 40 mil postos de saúde espalhados pelo país, até mesmo aqueles localizados nos pequenos povoados na Amazônia brasileira.
Esta campanha de multivacinação só foi possível graças ao “Zé Gotinha”, o amigo do SUS, criado pelo Ministério da Saúde, na década de 1980, para convencer as famílias a protegerem seus filhos contra a poliomielite: ele brinca com as crianças e recebe as gotinhas da vacina Sabin ao mesmo tempo que elas. Este personagem tornou-se fundamental, vistas as campanhas antivacina promovidas em redes sociais por negacionistas da ciência.
Apesar dos impasses, dilemas e dificuldades impostos pela pandemia, os trabalhadores do SUS não desanimam. Eles ganharam novo alento com o início da campanha de imunização contra o coronavírus, com vacinas apresentadas por dois importantes centros de imunobiologia do SUS, em parceria com entidades de outros países: o Instituto Butantan do Estado de São Paulo e, no Rio de Janeiro, a Bio-Manguinhos, unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde.
Ciência e atendimento de saúde público de qualidade são imprescindíveis para a vitalidade de qualquer país. E o Brasil tem as condições para oferecer isso.
Doutora em Bioética e Saúde Coletiva pela ENSP/FIOCRUZ, tem mestrado em Nutrição Humana (UFRJ), especialização em Atenção Primária em Saúde (Hospital Charité, Berlim, Alemanha) e graduação em Nutrição (UERJ). Trabalha com projetos de Atenção Primária em Saúde na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), tendo sido nutricionista sanitarista da Médicos Sem Fronteiras, em Moçambique e Brasil.