18/02/2021 Sonia Marinho Saúde
Durante a Idade Média, a peste, originária da Ásia, causou uma pandemia sem precedentes na Europa, de 1348 a 1351, que inspirou os contos do livro Decameron, do florentino Giovanni Boccaccio. Ao longo dos séculos, a peste ressurgiu com frequência na Europa, causando terror pelo alto grau de contágio e letalidade. Foi a epidemia de peste na Inglaterra de 1656, que levou Daniel Defoe, o também autor de Robinson Crusoé, a escrever Um Diário do Ano da Peste (A Journal of the Plague Year), relatando com admirável realismo a evolução da enfermidade.
Instituto Butantan, em 1915. Foto: Guilherme Gaensly, acervo do Instituto Moreira Salles.
Apesar de conhecida há séculos, o micro-organismo causador da peste – Yersinia pestis, foi descoberto somente em 1894, fruto das pesquisas de Alexandre Yersin, que também identificou o rato e suas pulgas como vetores da doença. Em 1895, Yersin, juntamente a Calmette e Roux, outros pesquisadores do Instituto Pasteur de Paris, desenvolveram um soro contra a peste, que curou pessoas enfermas.
A partir do sucesso do soro anti-pestoso do Instituto Pasteur, foi decidido que seria criado um instituto serumterápico, na Fazenda Butantan, afiliado ao Instituto Bacteriológico de São Paulo (atual Instituto Adolfo Lutz). Mas, em 23 de fevereiro de 1901, reconhecendo a especificidade da fabricação de soros e vacinas, o Instituto foi reconhecido como autônomo, sob a denominação de Instituto Serumtherápico do Estado de São Paulo (atual Instituto Butantan), tendo Vital Brazil como seu primeiro diretor.
DIFERENÇA ENTRE SORO E VACINA
A palavra vacina deriva do latim vaccinus, que significa “derivado da vaca”. O nome está relacionado à descoberta da vacina contra a varíola pelo médico inglês Edward Jenner, em 1796. Jenner havia observado que as ordenhadoras não desenvolviam a varíola, pois estavam em contato com a forma mais benigna da doença, presente nesses animais. Assim, resolveu inocular o líquido das pústulas das vacas em um menino e observou que a criança, posteriormente, em contato com a varíola humana, não se contagiou. Ao relatar o experimento à Royal Society, Jenner denominou de “vacina” o líquido que protegia contra a varíola.
As vacinas tradicionais são substâncias constituídas por micro-organismos (vírus ou bactérias) vivos ou mortos, ou seus derivados. Elas estimulam o sistema imune a produzir anticorpos (proteínas que atuam na defesa do organismo) contra os agentes causadores de infecções. Ao ser contagiada com o agente infeccioso, o sistema imune da pessoa vacinada reage, imediatamente, produzindo anticorpos. As vacinas, portanto, estimulam uma imunização ativa, garantindo proteção duradoura.
O soro, por outro lado, consiste num líquido plasmático, rico em anticorpos contra uma enfermidade, ou veneno. Ele é obtido a partir da filtragem do sangue de algum mamífero de grande porte, como um cavalo, que recebe o antígeno em quantidades para produzir imunidade, mas sem causar mal ao animal. O soro é uma forma de adquirir imunidade passiva, curando o doente grave.
SOROS E VACINAS DO BUTANTAN PARA O SUS
No Brasil, cerca de 75% das vacinas e 80% dos soros de todos os tipos, utilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), são produzidos no Instituto Butantan, além de exportá-los, a preço de custo, para vários países africanos e latino-americanos que, de outro modo, não teriam acesso a esses imunobiológicos.
O presidente Theodore Roosevelt (EUA) em visita ao Instituto Butantan, em 1913.
Dentre os diversos soros produzidos pelo Instituto Butantan, destacam-se os soros contra veneno de cobras, e isto se deve à paixão de seu primeiro diretor Vital Brazil pelo ofidismo. Ele inspirou-se nas pesquisas de Albert Calmette, do Instituto Pasteur, que foi o primeiro a demonstrar que o veneno ofídico era capaz de induzir a formação de anticorpos no organismo. A descoberta o estimulou a desenvolver o tratamento para o envenenamento causado pela picada de cobras brasileiras, conseguindo demonstrar a especificidade dos venenos de cada serpente. Esta iniciativa foi de enorme relevância, pois calcula-se que cerca de 5 mil pessoas, no início do século XX, morriam por picada de cobra.
Atualmente, são registrados, anualmente, cerca de 28 mil casos de acidentes com serpentes, tratados com o soro produzido pelo Butantan, gratuitamente pelo SUS. A importância dos soros antiofídicos do instituto foi reconhecida pelo grande público, em dois episódios bastante midiatizados, ao longo de 2020: o caso da picada de um estudante de veterinária por uma serpente naja, traficada por ele da Ásia; e o caso da médica picada por uma jararaca, quando tomava banho de cachoeira em Mato Grosso. Em ambos os casos, não fosse o estoque de soro do Butantan, estas pessoas teriam falecido.
Em média, o Butantan produz mensalmente 50 mil frascos de 13 tipos de soros : 8 soros antiveneno – soros antiofídicos, soro antiaracnídico (aranha), e soro antiescorpiônico; soros antitóxicos contra as toxinas produzidas por bactérias – antitetânico, antidiftérico, antibotulínico; 1 soro antiviral – antirábico (contra o vírus da raiva). O soro antipestoso não é mais produzido, pois a peste foi erradicada do Brasil, sendo o último caso notificado em 2005.
O Butantan fornece ao SUS, atualmente, oito tipos de vacinas: Vacina da Hepatite A e Hepatite B; Vacina da raiva; Vacina influenza (gripe); DTP (tríplice bacteriana contra difteria, tétano e coqueluche; e HPV (contra o papiloma vírus).
A estas oito vacinas, somou-se, recentemente, a Coronavac, contra o coronavírus, produzida graças à transferência de tecnologia e à Parceria de Desenvolvimento Produtivo, realizada entre o Butantan e o laboratório chinês Sinovac.
Em 17 de janeiro de 2021, a imagem de Mônica Calazans, uma enfermeira do SUS, sendo vacinada contra o coronavírus, trouxe uma lufada de esperança para a população brasileira superar enfim esta pandemia, tão mortífera quanto foi a peste bubônica, combatida pelo médico Vital Brazil, no início do século 20.
A SEQUÊNCIA DOS TEXTOS SOBRE ESSA TEMÁTICA:
1 - Graças ao SUS, brasileiros recebem cuidados integrais e gratuitos em saúde
Doutora em Bioética e Saúde Coletiva pela ENSP/FIOCRUZ, tem mestrado em Nutrição Humana (UFRJ), especialização em Atenção Primária em Saúde (Hospital Charité, Berlim, Alemanha) e graduação em Nutrição (UERJ). Trabalha com projetos de Atenção Primária em Saúde na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), tendo sido nutricionista sanitarista da Médicos Sem Fronteiras, em Moçambique e Brasil.