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Na Flip, empoderamento feminino em ritmo de cordel

05/09/2019 Beatriz Mello Mulheres Brasileiras

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Foto: Jarid Arraes - Divulgação. 

Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, região do semiárido cearense conhecida como Cariri, onde o cordel é parte da rotina local. O gênero literário, que costuma começar com relatos orais rimados para só depois passar ao papel, é impresso em livretos e frequentemente ilustrado com xilogravuras que ajudam a narrar as agruras, a perseverança e o humor do povo nordestino. 

Filha e neta de cordelistas, a jovem escritora teve pela frente um caminho mais difícil do que se poderia supor: Jarid nasceu mulher numa cultura tradicionalmente patriarcal, e nem o cordel, cultuado por dar voz a uma gente sofrida e invisível ao resto do país, está livre do machismo. Aqui mulheres costumavam ser leitoras, nunca autoras. 

Costumavam. Aos 28 anos, Jarid já lançou três livros de poesia e contos e uma coletânea com 15 cordéis, além de ser a responsável por introduzir narrativas sobre heroínas negras brasileiras. Mais recentemente, sua obra passou também a promover uma visão da mulher sertaneja além dos estereótipos. Com esse currículo, Jarid tornou-se a primeira cordelista mulher a se apresentar na Flip, Festa Literária Internacional de Paraty, a maior do gênero no Brasil. 

 

O resgate do legado das heroínas negras 

Em seu primeiro livro, Jarid conta a história de Dandara dos Palmares, abolicionista e líder quilombola. A inspiração da jovem escritora para contar a história de Dandara surgiu da falta de material, histórico e literário, que apresentasse essa e outras grandes mulheres negras ao grande público. 

A primeira tentativa de Jarid, um conto publicado na internet, recebeu duras críticas, frequentemente acompanhadas de insultos. Negligenciando os fatos históricos, internautas afirmavam que Dandara se tratava de uma lenda, uma figura imaginária. O livro, portanto, combina fantasia com eventos documentados do período escravagista. 

De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), cerca de 100 milhões de brasileiros se declaram negros ou pardos, e metade dos habitantes são mulheres. Parece inacreditável que, mesmo assim, heroínas como Dandara não sejam celebradas como parte da identidade nacional. O trabalho de pesquisa e ficção de Jarid ajuda a retificar essa omissão histórica. 

Em entrevista à rádio francesa RFI, a escritora lembra que, durante sua infância e adolescência, mulheres negras que tenham feito história eram negligenciadas pelo currículo escolar. Desconfiada, Jarid mergulhou em pesquisas e descobriu, sozinha, personagens e episódios essenciais da História brasileira que precisavam urgentemente ser contados. 

Em 2017 lançou a coletânea de cordéis “Heroínas Negras Brasileiras”, que conta de forma ritmada a história de Maria Felipa, Zeferina, Tia Ciata e outras 12 mulheres negras. Os cordéis foram traduzidos para mercados de fora e serviram de inspiração para peças teatrais encenadas em escolas e centros culturais que devolvem, aos poucos, o lugar de destaque dessas mulheres na História do Brasil. 

 

Vozes dissonantes 

Para Jarid, que se considera uma retirante moderna e vive desde 2014 em São Paulo, toda forma de arte é também um veículo de expressão política. A autora tem consciência de sua função de promover narrativas divergentes daquela oficial, em que o agente transformador é invariavelmente homem e branco: “Temas coletivos urgentes, como o empoderamento da mulher no Brasil, em particular a negra, encorajam minha produção literária", afirma.

Coragem que fica evidente em seu mais novo lançamento, o livro de contos “Redemoinho em dia quente”, lançado pela Alfaguara. Nele, todos os contos são protagonizados por mulheres sertanejas. As histórias, porém, fogem do estereótipo da mulher sofrida que vive em casa de taipa desafiando a seca. Com riqueza de detalhes, o livro mostra a diversidade das personagens e como elas lidam com dilemas e questões sociais no sertão cearense. 

Mesmo narrando a escassez material aqui e ali, a autora faz questão de contar histórias que mostram um Cariri dinâmico: descreve mulheres de diferentes idades, sexualidades e níveis sócio-econômicos; algumas que seguem tradições e outras que as subvertem. E promove, durante toda a leitura, uma reflexão ampla e honesta sobre temas que afetam diretamente a vida das mulheres, sertanejas ou não, como violência doméstica ou preconceito etário. 

 

Reconexão com o Cariri 

Jarid lembra que sua relação com a terra natal nem sempre foi bem resolvida, e que o processo de criação de seu novo livro a reconectou com o Cariri. Em entrevista ao jornal El País, a autora afirma que por muito tempo se sentiu estrangeira em sua própria cidade. “Mas a distância e a saudade do lugar onde nasci me fizeram perceber que, não fosse o Cariri e não fosse o cordel, eu não teria me tornado escritora”, pondera Jarid. 

Enquanto escrevia "Redemoinho em dia quente”, relatando nele as mulheres do semiárido, a autora diz ter se reconhecido em todas elas. É a inquietação de contar as histórias dessas mulheres anônimas e, portanto, da própria Jarid, que a move a continuar escrevendo. Sorte a nossa. 

 

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Beatriz Mello

Beatriz Mello é curiosa por natureza e publicitária e cientista social por profissão. Trabalhou em empresas de mídia como Globosat, Viacom e Discovery. Vive em Berlim, onde, recentemente, especializou-se em Liderança Criativa e fundou a “Tropical Intelligence- Insigthfull Data Storytelling”, uma consultoria de dados para indústria criativa. É uma brasileira de destaque na área de Dados e Conhecimento do Consumidor e escreve sobre outras mulheres que representam positivamente o Brasil.