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O CINEMA NOVO DO BRASIL

18/09/2020 Eveline de Abreu Cinema e Teatro

Em três cenas, a irreverência de uma ruptura ética e estética que bateu asas e ganhou o mundo da Sétima Arte

No álbum Tropicália 2, lançado em 1993, Caetano e Gil interpretam lindamente um sambinha, puxado para a bossa nova, composto pelos dois, que atende pelo nome de Cinema Novo. Esta faixa não deixa esquecer o bom acordo da música com o cinema, que irrompiam na contramão dos cânones daquelas priscas eras. Pois bem, a coincidência não é de se desprezar, pois se o Cinema Novo está para os anos 60, o Tropicalismo não ficava atrás. 

Nada à toa, na inocência. De novo, a década era a de 60. E chovia chumbo no Brasil.

O Cinema Novo brotou muito depois da invasão europeia à Pindorama, a terra livre de todos os males dos tupis-guaranis, também conhecida como o “descobrimento” do Brasil, para dourar a pílula do que há de traumático em toda apropriação indébita. Trata-se de um movimento nascido do desconforto e incômodo de cineastas frente às desigualdades reinantes entre nós – miscigenados, praticamente desde o berço –, ávidos de expressões estéticas mais iconoclastas, sem dúvida, só encontráveis nas alas vanguardistas. 

 

Imagen del Cinema Novo, de Johnsmith22who. (Fonte: Commons Wikimedia/ File: Cinema_Novo.jpg).

Poucos aqueles que se dão conta, sobretudo os nascidos e amamentados num ambiente eivado de superproduções de Hollywood, de que, na década de 60 do século passado, fez aparição, entre nós, um movimento dos mais ousados e progressistas da cinematografia global, o chamado Cinema Novo. 

À época, o mundo atravessava águas turbulentas, estimulando inconformismo por toda parte. Ao mesmo tempo, no Brasil, o desejo de seguir na contramão das convenções sociais e culturais, conectado à realidade das camadas desfavorecidas da população, serviu de estímulo ao cinema mais politizado da América Latina do período – o nosso. 

A Estética da Fome, de Glauber Rocha, não hesitou em mostrar personagens comendo terra e raízes, utilizada por muitos outros filmes do movimento. Nela, invocavam-se a identidade brasileira e os problemas nacionais, o Nordeste preterido e a secura do Sertão, as favelas e as periferias, mostrando a cara desigual do Brasil da fome e da miséria. Glauber, um dos cineastas mais representativos do cinemanovismo, propunha um cinema que esclarecesse e educasse o público.

 

EM TERRA BRASILIS

Dentre os países aliados contra o nazismo e o fascismo na Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos passaram a exercer a hegemonia não só na economia e na política, como na arte e na cultura, nos costumes e no gosto. No cinema, as superproduções hollywoodianas deram o tom, adotado sem resistência pela Atlântida Cinematográfica, do Rio de Janeiro, e pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz, de São Paulo, em seus filmes e musicais ingênuos, ao lado de chanchadas e comédias popularescas. 

Ideias embrionárias remontam ao 1º Congresso Paulista de Cinema Brasileiro e ao consequente 1º Congresso do Cinema Nacional, ambos de 1952. Logo depois, em 1955, o filme Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, foi uma avant-première do que viria para ficar e marcar uma virada no cinema. 

As lentes insatisfeitas de jovens cineastas, dispostos a rebater o que consideravam demodé e de gosto duvidoso, entoaram a palavra de ordem “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, para combater a indústria de bens culturais – onde cabe o cinema –, cuja finalidade é a mediocrização do público espectador para distraí-lo de pontos nevrálgicos das discrepâncias sociais e econômicas. Foi assim que a turma do chamado Cinema Novo apostou todas as fichas na vitória contra a pauperização intelectual que sequestrava a população brasileira, e o meio seria o cinema engajado feito com poucos recursos.   

O que estava em jogo era a independência cultural do filme nacional, tanto nos temas como numa estética genuinamente brasileira, livre de preciosismos técnicos e estilísticos. A exiguidade de recursos e a autonomia criativa deram aos cineastas a possibilidade de instigar os espectadores, e a percepção específica de cada diretor conferiu ao movimento o estatuto de cinema de autor – dito de outro modo, quando o diretor imprime nas telas o que visualizou em sua cabeça. 

Passo a passo, esse movimento em favor da arte comprometida com a equidade e pautado pela cultura brasileira tomou corpo e, até hoje, é mundialmente reconhecido como um dos maiores, se não o mais importante, do país.

 

INFLUÊNCIAS DE OUTROS CANTOS

Como cultura é mistura, é fusão, vale lembrar que, à época, havia o neorrealismo italiano, surgido no fim da Segunda Guerra Mundial, a contestatória Nouvelle Vague francesa, aliada estética do movimento neorrelista, e o Novo Cinema português, esses dois também nos anos 60. Todos a contrariar os ditames do cinema tradicional, que era a representação cor-de-rosa do mundo em comédias, épicos e musicais hollywoodianos, bem ao gosto do Tio Sam.

A Nouvelle Vague guarda influências do neorrealismo italiano, sobretudo na estética de “uma câmera na mão”, “cinema de autor” e contestação ao cinema tradicional. Mas dele se afasta nos temas: se o neorrealismo descortina as tensões sociais, a Nouvelle Vague é o retrato de uma França existencialista, ocupada com aspirações de vida, feminismo, marginalidade, prostituição, sexualidade e triângulos amorosos. Já o Novo Cinema português romperia com a cartilha autoritária do salazarismo, surgido numa conjuntura bastante análoga àquela que, entre nós, deu vida ao Cinema Novo.

O objeto e as peculiaridades estéticas do neorrealismo italiano eram coincidentes com o Movimento Cinemanovista, com produções de baixo custo e exíguos recursos técnicos. Ambos saíram dos estúdios das grandes produtoras, para mostrar a vida como ela é: nua e crua. Era a hora e a vez de dar voz aos ninguéns, fazendo-os aparecer como atores diante das câmeras e sob a luz natural das ruas. 

Mas foi apenas entre 1959 e 1960, que o Cinema Novo viraria legenda para designar formalmente o movimento dos issurectos. 

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Nesta primeira cena, foram vistos a estética, as influências e o pano de fundo histórico e social para o advento do Cinema Novo. 

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Eveline de Abreu

Publicitária e redatora. Descobriu a vocação para ensinar quando dirigia a assessoria de comunicação de um órgão público e precisou treinar e capacitar estudantes de jornalismo. Desde 2007 na Europa, adaptou esta experiência exitosa à versão digital e fundou a Incubadora de Escritores – serviço on-line de análise e parecer, apoio no desenvolvimento de textos, capacitação e revisão de conteúdo. A nostalgia do Brasil a levou a cozinhar e anotar receitas, na tentativa de compensar pela boca a saudade que lhe invadia o coração. O resultado tem sido a culinária natal, reinventada com produtos locais, e textos de dar água na boca.